sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Dos males, o menor...

O velho Tibúrcio desde muito antes dos anos lhe pesarem nos ombros e a geada cobrir-lhe os cabelos, já era dado às flatulências descontroladas e de odores que faziam com que a memória não se esquecesse dos anos passados em Guaíba, cerca daquela fábrica fedorenta, tempos difíceis aqueles que por lá passaram e queriam esquecer. Seus filhos um tanto pelo respeito outro tanto pelo costume dos anos de convivência já não davam mais atenção. Mas, o grande problema era a visita da Maria para o almoço de domingo, primeira namorada do filho José, o mais velho, ela fazia muita questão em conhecer seus pais. Isso sim era um problema, como seria sua reação quando o Pai largasse seus primeiros gases na frente da amada? Maria, moça prendada, estudada na capital em colégio de freira, um achado de José, que não cansava de agradecer a graça de ter ido ao velório do compadre Moisés, coisa que não lhe era boa idéia no dia, mas que lhe foi de grande proveito e serventia, pois foi nesse dia fúnebre para a família do defunto que ele conheceu a sua amada. De antemão o velho Tibúrcio, pouco afeito a muitas delongas nos palavreados, já avisava o filho: - Nem na noite que estendi pela primeira vez os pelegos pra tua mãe se deitar não contive meus gases, não será na visita da tua amada que será diferente. Eles independem da minha vontade não escolhem horário nem palco para mostrarem sua independência, seria como tentar segurar o Minuano em noite chuvosa de agosto, uma tarefa inglória, portanto já prepare a moçoila para que não tenha surpresas do que pode se “assuceder”.
José sabia que não adiantava solicitar o impossível a seu Pai, contra a natureza nem reza braba resolve. Sempre foi assim, não mudaria nunca, talvez esta seja a única coisa que ainda nos traz à mente os três anos vividos perto daquela fábrica fedorenta, o cheiro que surgia segundos após aquele som, que mais lembrava o vento querendo levar consigo o canto da barraca mal atada nos dias de praia no Cassino, emanando pela culatra das bombachas largas que papai ainda relutava em usar. Segundo bocas pequenas, conta a história, que foi praga daquele capuchinho da paróquia em Rio Grande, quando papai lá estudou, depois da última vidraça quebrada nos fundos da igreja, coisa de criança levada e bodoque na mão, mas que não merecia tal magnitude praguejante. Domingo chega trazendo aquele sol de outono, desacompanhado do vento que certamente ficou fazendo parceria com a primavera que já tinha passado. Temperatura amena, palco perfeito para a despedida das andorinhas, que nas suas últimas revoadas, sabedoras das friagens que se aproximavam, retornavam rumo a pagos mais amenos de melhor feição às suas estripulias esvoaçantes. O cordeiro carneado na véspera, desde cedo já se mostrava pras brasas, numa distância respeitosa, como não querendo atropelar a tradição, nem fugir da história. Na cozinha, Edelbrina sua mãe temperava o feijão, que mais tarde teria parceria da farinha de mandioca no preparo do feijão mexido, tão famoso no boca a boca dos arredores, cuja receita nem lembrava mais sua nascença. Tudo tão perfeito conforme José havia pensado, até o Patrão Celeste lhe premiava com aquele dia criador, sua amada Maria teria um dia inesquecível com sua família. Seus irmãos estavam preparados para permanecerem distantes das estripulias e mal criações, e isto teve seu preço! Prometera a eles um dia inteiro solitos com a tubiana velha, a petiça sogueira, para extravasarem suas vontades perniciosas. Mas com certeza valia a pena o prometido, até porque no fundo acreditava que a petiça bem que gostava daquelas fugidas na direção do mato, no piquete atrás das casas. Saber que os irmãos se comportariam frente sua noiva, em troca de um dia com a tubiana, já lhe aquietava pela metade as idéias preocupantes. Restava tão somente a mais importante, as flatulências do “véio” Tibúrcio, este sim o grande problema, de impossível resolução e de grande arrependimento no momento, pelo fato de não ter de antemão avisado a amada desta desgraça. Só de pensar que sua mãe desprovida de malícia servira ontem na janta sobremesa de batata doce com mel, esquecida do somatório dos malefícios que essa guloseima trazia aos intestinos do marido, lhe exacerbava por demais as preocupações. Mas como diz o ditado, quem morre na véspera é peru, então deixemos que as coisas sigam o rumo normal dos acontecimentos, pensava José. E tempo já não resta mais para nenhum preparativo, a charrete que trazia a sua amada já despontava na porteira, ponteada por seu pai, o coronel Gomercindo e sua mãe dona Corina, mais entonados que pica-pau em tronqueira. O velho segurava as rédeas da condução como se segurasse toda a história da sua família, que no diz-que-me-diz-que das conversas de galpão apontavam origem pouco enaltecedora para as muitas sesmarias de campo da família. Mas isso não vinha ao caso e José não era de meter a mão em toca de marimbondo. O importante era a visita de sua amada, “cousa” que ele não tinha certeza se era idéia dela ou desejo do sogro no afã de fazer juízo da sua família. Todos na frente da casa na espera das visitas, último tapa na orelha do irmão mais novo que por momentos esquecera-se do trato feito em troca da petiça e já queria travessurar, muita água de cheiro no corpo, e a certeza de que os odores da recente pestilência do véio Tibúrcio segundos atrás já se dissipava no ar. O coração de José parecia querer sair pela boca e ir de encontro a Maria, estava mais faceiro que égua com dois potrilhos, aqueles cabelos negros, os olhos verdes eram visão dos deuses, agradecia ao Patrão Celestial por tê-la conhecido e a certeza de amá-la para sempre.
A chegada da condução com as visitas não podia fugir a tradição, foi num cumprimento curto e altivo por parte dos patrões, olhos baixos e respeitosos pelas esposas e com olhos ávidos de paixão na busca um pelo outro por parte dos enamorados. Apresentações feitas e convites a adentrar a sede principal para eles sorverem um amargo e elas um licor de butiá bem doce e com pouco álcool, foi quando nesse momento Maria num gesto suave, tocando a mão de José lhe disse que necessitava de um aparte importante antes dos “continuantes”. Numa fração de segundos muitos pensamentos revoaram em sua mente, o que poderia ser tão importante nesse momento que deveria ser contado aqui na varanda, a sós, como num confessionário de igreja? Sua amada terminaria ali com seu amor? Não compartilhava com intensidade dos mesmos sentimentos que ele? Conseguindo disfarçar sua preocupação e pavor com o que estava por vir da boca de sua amada e refreando sua vontade em pedir que ela não dissesse nada que pudesse manchar aquele dia que iniciara tão lindo, perguntou educadamente se não gostaria de guardar até mais tarde seu assunto, que pelos gestos da amada lhe preocupavam por demasia. Suas feições mais tensas e preocupantes indicavam a pressa e urgência do assunto, e José por um segundo sentindo-se que nem palanque em banhado, num gesto tranqüilo por fora, consente que a amada fale, já na espera do pior. Maria, envergonhada sem saber quais palavras usar no momento, pois sua educação franciscana lhe ensinara sempre colocar as palavras certas nos momentos certos, para que jamais transparecesse pouca educação, mostrando uma vermelhidão na face até então desconhecida por José, lhe confessa ter que lhe contar um segredo até então escondido do amado. Nova revoada de idéias acompanhadas de arrepios pelo corpo lhe apoquentam por breves segundos, o que seria tão importante para ela ter omitido a ele, mesmo após as juras de amor eterno trocadas, e promessas de ausência de segredos? Sem mesmo permitir que outros pensamentos pudessem surgir em José, sua amada lhe confessa que para sua vergonha e de sua mãe, seu pai era dado à flatulências continuadas e ruídos altos que mais pareciam trovões prenunciando os temporais do final do outono. Mas, lhe tranqüilizava, pois os mesmos não vinham acompanhados de odores fétidos. Era um problema que acompanhava seu progenitor desde jovem e não tinha compostura nem remédios que o ajudassem. Com os olhos marejados, sua amada confessava seu medo desse infortúnio trazer problemas para o amor deles. A gargalhada de José com certeza se ouviu lá no galpão, rapidamente explicada a Maria, que já mudara sua feição da delicadeza para raiva por estar o namorado rindo daquela maneira da desgraça de seu pai, o namorado foi explicando que sua indelicadeza no momento deveria ser perdoada, pois também escondera de sua amada as flatulências do seu Tibúrcio, que só se diferenciavam das do Coronel Gomercindo, por serem silenciosas e acompanhadas do odores mefíticos. Naquele momento José teve a certeza que Maria seria sua companheira para o resto de sua vida, pois além do grande amor que compartilhavam e o gosto pelo licor doce com pouco álcool de suas mães, existia as flatulências de seus pais. Do coronel Gomercindo a lembrança dos trovões de final de outono e do velho Tibúrcio, o cheiro daquela fábrica em Guaíba, que parelha perfeita faziam na benção da união de seus filhos. Assim contou a história de boca em boca...

Um comentário:

  1. SENSACIONALLLLLLL!!!!!!
    A-DO-REI...
    A cada dia tu tens te superado sogrinho!!!
    Espirituosíssima e de muito bom humor....
    De onde veio a inspiração????
    Aprovadíssimo!!!
    Parabens!!!!

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