segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Cusco Velho...

Ele latia um latido rouco e intermitente, avisando a chegada de algum intruso, sua velhice tinha-lhe carcomido parte do tino da razão. Quantos anos já tinham se passado, cada moita na sua volta lhe era conhecida, os atalhos das estradas eram seus caminhos percorridos, as diferentes frestas dos galpões e das taperas lhe serviam de refúgio nos rigores do inverno, o açude no fundo do piquete seu recurso na serventia do alivio da lombeira e calor nos verões infernais. Tudo lhe era familiar, tinha nascido ali e adotara o lugar para sempre como morada. Se pudesse voltar no tempo, com certeza faria tudo novamente. Não sentia inveja dos dois cachorros que moravam na casa grande, que tinham seus pratos de comida e dormiam na frente da lareira nos dias frios e na varanda fresquinha nas noites quentes.
Ele era mais feliz, tinha o mundo como querência, as estrelas como teto, o vento da noite da lhe refrescar. Tinha na lida do dia, na busca da rês desgarrada o sentimento do dever cumprido. Tinha no afago da peonada ao retornar a mangueira o agradecimento pela ajuda prestada. E isso não tinha preço, o rabo a balançar na retribuição dos cumprimentos era sua maneira de também agradecer a parceria na tropeada.
Mas os invernos passaram num upa, o corpo dói muito, as cicatrizes da idade que o tempo cobra sem pena nem dó chegou cobrando seu destino. De um tempo pra cá que já não sai mais com a peonada, deixando aos mais novos esse afazer. Nem sabe quantos daqueles que partem parceirando os peões na jornada do dia que inicia são seus filhos de sangue, mas sabe que todos aprenderam a lida com seus ensinamentos, cosa de se passa de geração para geração daquilo que um dia também recebeu dos mais velhos.
Hoje, na sombra do cinamomo os dias são mais longos, calmos e tristes, e na tentativa de conseguir mais uns tempos de vida, deitado se mantém ao largo de quase todo dia, um pouco dormindo outro tanto fiscalizando quem sabe as travessuras dos mais novos, repreendendo num latido forçado seus erros e mais algum ensinamento deixando.
Lembra com muito gosto de quando ainda podia quebrar um osso de costela num repente, ou engolir por inteiro uma manta de gordura, que acima de matar sua fome tinha o significado de mostrar hierarquia e respeito aos mais novos. Sempre soube da sua importância no dia a dia do campo, por isso nunca deixou de retribuir a altura seu merecimento. Uma semana só, pelo que se lembra, foram os dias que não acompanhou a peonada, aquela víbora maldita quase o matou. Mas seu veneno não foi maior que sua vontade de viver e suportar a dor daquela coisa a percorrer suas entranhas. Logo já tava latindo junto aos cavalos, a princípio com dor, mas o tempo curou tudo e retornou a lida.
Como era matreiro e prevenido, até o lugar de sua última morada já tinha escolhido, vai ser ao lado do tumulo dos patrões velhos, que já se foram a um par de anos. Sempre dedicou seu respeito e amor para com eles, portanto quando partisse para a estância grande do céu seria ao lado deles que desejava estar ao iniciar a próxima jornada.
Mas enquanto esse dia não chegar vai ficando ali debaixo do cinamomo, ora dormindo ora acordado, no movimento dos olhos tenta cuidar a sua maneira todo o movimento, e quem sabe as vezes num levantar de orelhas a tentativa de ouvir mais algum som e avisar a chegada do intruso, pois sabia que mesmo velho e doente, no final de sua jornada ainda tinha algo a ensinar, a sua dedicação em ser útil, mesmo debaixo do cinamomo, seria para os mais jovens um exemplo a ser seguido.

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